Como as instalações anteriores de Ana Holck, Elevados radica-se no fato de a arte acontecer no presente, aqui e já, não ali ou após. Antes de acontecerem, suas instalações são vislumbradas em projeções da artista, que esboça, pesquisa, escreve, fala, projeta, calcula, avalia, negocia, ensaia. Depois, persistem na memória de quem as vivenciou, também podendo ser imaginadas a partir de indícios de produção e meios de registro: desenhos, maquetes, textos, fotografias e vídeos. Efetivamente experimentadas apenas onde e quando acontecem.
Suas instalações rechaçam a convenção da obra de arte como objeto transportável de existência virtualmente infinita. A recusa em conformar coisas móveis e perenes, levada a um limite, gera configurações com fisicalidade suficiente para alcançar intenções e desejos. Se evitam objetalidades ostensivas, também não almejam o imaterial; desviam-se de carências e transbordamentos. Pouco ou muito, dependem das exigências intrínsecas a cada intervenção.
Importa a Ana Holck ater-se ao necessário, sem mais, sem menos. Vontade de economia justa que a leva a usar faixas de adesivo vinílico, produto industrial transformado em matéria artística, em elemento distintivo de seu trabalho, contribuindo para a expansão em curso, aparentemente sem fim, dos meios da arte. Elevados aprofunda essa pesquisa, explorando os atributos do material – cor, dimensão, luminescência, tenacidade, aderência, lisura, viscosidade. Segue desenhando faixas de cor e largura contextuais, referentes a elementos do lugar. Configura quase não-coisas que se desenham desenhando o espaço. E testa a capacidade de estruturação dos adesivos, começando a experimentar a adesão das faixas entre si e não mais somente aos suportes da arquitetura, construindo uma rede de tensões: fragilidade/força, atração/repulsa, bloqueio/liberação.
Elevados não é adaptável a outro sítio, foi pensada particularmente para uma galeria específica do Paço Imperial. Piso, paredes e teto, vãos, portas, janelas e equipamentos, e, sobretudo, o vazio da Sala Mestre Valentim são elementos da obra, redimensionados pelo feixe de tiras que a artista soma à situação preexistente.
Confronto de formas, ritmos, materialidades que convida e exige a experimentação dos corpos. Mais que olhar, é preciso entrar, atravessar, transitar, ir e vir. Mobilizar o corpo para fluir ludicamente pela cama-de-gato que a artista entrelaçou na escala arquitetônica, a teia que chama, instiga e pode aprisionar. Experiência que demanda uma percepção crítica, Elevados requer distanciamento reflexivo, pois introjeta e complexifica a sensação de se estar ao mesmo tempo dentro e fora.
Ao intervir em locais largamente usados, que podem ter tanto configurações amorfas, desestimulantes, quanto caracterizações fixas, cerceadoras, impeditivas, o problema que Ana Holck impõe para si mesma é ativá-los, requalificá-los. Conseqüentemente, precisa refletir sobre seus elementos e estrutura. Sem almejar restituir purezas supostamente originais, ou visar a otimizações, a artista pensa os lugares para concebê-los outros, reinventá-los. Em Elevados, as faixas surgem como fibras e nervos espaciais tornados visíveis, palpáveis. Não resultam, contudo, de uma dissecação anatômica que pretenda exibir a verdade crua do lugar. O que a artista dá a ver são as nervuras e fibrilações de outra Sala Mestre Valentim possível. Como os objetos, espaços e corpos que enreda, suas instalações, para além de literais, são críticas, projetivas, ficcionalizantes.
Por outro lado, já tendo ocorrido na rua, em galerias de arte e centros culturais, as instalações de Ana Holck não têm local determinado ou típico para acontecerem: estão abertas aos mais diversos sítios. Sua vocação parece ser atuar na cidade, extensivamente. Empena cega, Transitante, Rotatória, Impedimento, Permeio, Estais, Quarteirão, Elevados, Térreo-Teto – títulos com significados múltiplos, que remetem a situações e operações plásticas, a elementos de arquitetura, engenharia e urbanismo.
Suas instalações não afetam, contudo, apenas edifícios e cidades. Além da condição física dos lugares onde intervém, seu trabalho envolve a situação institucional da arte. Experimentando em instituições, deve experimentar as instituições. Em Elevados, Ana Holck tem o desafio de ativar uma das galerias do Paço Imperial, de rever sua institucionalização. Durante vinte anos, evento após evento, esse recinto tem estado disponível às mais diversas manipulações de artistas, curadores, cenógrafos e designers, que produziram arranjos os mais variados com obras de arte, objetos, textos, cores, texturas. Variando de vazio submisso a espaço exponenciado, confirmou-se como local denso de memórias e histórias, que alcançam muito mais do que duas décadas, mas também se tornou um lugar exaurido, embora ainda potente e pleno de possibilidades.
Vinculadas à vertente construtiva da arte moderna, suas instalações objetivam mais os princípios plásticos do que a forma. A geometria euclidiana persiste, embora não como paradigma da lógica do mundo pós-industrial. Deriva indicialmente dos lugares onde a artista intervém. Como linguagem, parte menos do léxico do que da sintaxe: relações, jogo, movimento.
Elevados constitui-se de faixas distribuídas regularmente a partir do limite superior das paredes, em disposição ortogonal que privilegia as direções dominantes na cubagem do cômodo, enfrentando, para subverter, sua problemática longitudinalidade. As tiras transversais partem do teto, perpassam, pinçam e grudam-se às outras, que deslizam pelas paredes, soltam-se rumo ao chão e ondulam – descendo ou elevando-se, as faixas sustentam-se mutuamente para ganhar o espaço. Ao se articularem segundo arranjo racional e intuitivo, tecem uma trama vazada, descentrada e assimétrica, oposta à ortogonalidade regular inicial, que investe no vazio sem se condensar formalmente.
Sem escamotear os dados da equação urdida em Elevados, manejando-os com rigor e imaginação, Ana Holck pretende ir além com eles, ir além deles. Quer insuflar a Sala Mestre Valentim, o Paço Imperial, a cidade. Alteando horizontes, arma um relevo sem massa, uma topografia aérea. Paisagem desestabilizada, perturbadora, que deseja tirar o nosso chão e bem pode nos fazer sentir, mesmo brevemente – aqui, agora – sobrelevados.
[Roberto Conduru]