“Só existo na vida com a condição de ver”, escreveu Le Corbusier em 1929, ainda estupefato com a “luminosidade imensa” que tanto o impressionara no Rio de Janeiro. Daí que a janela horizontal tenha ganhado o estatuto de elemento estruturante em sua arquitetura. Tratava-se, para o mestre franco-suíço, de erigir um limite que constituísse o habitante divorciando-o da natureza para assim reinventá-la como paisagem, submetida (e submissa) ao enquadramento da visão. O ato de habitar coincidiria, sob essa ótica, com a assunção da posição de vidente. Daí também que um dos trabalhos de Ana Holck, Fuga (2004), tenha intervindo justamente sobre a janela de um dos principais (e mais heterodoxos) monumentos da tradição corbusiana, o Palácio Gustavo Capanema. Como que em resposta à onipresença do brise-soleil na fachada norte do edifício, a artista lançou mão de películas de filme de controle solar para recobrir a janela da ala de exposições. Havia, no entanto, algo de decididamente anti-corbusiano neste eco, já que o grau de opacidade variável dos diversos fragmentos de película contrariava tanto o preceito de iluminação homogênea do ambiente interno quanto o enquadramento transparente do exterior. Mais importante: tal variação transformava a janela numa membrana autônoma e expressiva, a destoar do modus operandi mecânico prescrito pelo arquiteto. E emprestava-lhe inusitada proximidade corporal, já que, ao tornar-se um anteparo visual, ela insinuava-se como barreira ao espectador.
Encobrimento e desvelamento, acesso e obstrução, visualidade e materialidade – é ao longo destes eixos que o espaço aqui articula-se. Escorada nessa gramática, Holck dá sequência, em Bastidor, à sua investigação sobre os desdobramentos escultóricos de um tipo recorrente da paisagem urbana, o calçamento hexagonal de concreto. Investigação que aqui extrapola a autonomia do objeto e retoma uma questão cara à artista desde o início de sua trajetória: a ocupação do espaço arquitetônico como um todo, em diálogo com seus limites.
Pode-se pensar a constituição desse trabalho em três tempos. De início, um simples deslocamento: desenterrado e depositado sobre o piso o bloco é destituído de sua função habitual e de seu quinhão no padrão visual que espraia-se calçada após calçada. O que ele ganha em troca é concretude. A manobra aqui segue na contramão, ainda que íntima, de um Carl Andre. Pois se as mais conhecidas esculturas do artista minimalista afirmavam sua presença ao fazerem-se rentes, porém irredutíveis, ao chão, esses blocos o fazem no que se lhes restitui a tridimensionalidade, ou seja, no que as coordenadas de sua percepção são reescritas em termos de massa e opacidade. Seu fundamento escultórico reside no prosaico estranhamento, ou contrassenso fenomenológico, de se constatar que há peso no chão. É índice dessa constatação, diga-se de passagem, o fato dos blocos estarem dispostos não apenas lado a lado, mas também empilhados, tal qual a artista relata tê-los encontrado em canteiros de obras.
Num segundo tempo, os termos dessa presença bruta são revertidos pela repetição de sua forma hexagonal, agora trasladada para um suporte material leve e translúcido, o policarbonato alveolar. Como ressalta a própria artista, Bastidor inverte o movimento de trabalhos como Quarteirão (2004) e Elevados (2005). Antes eram fitas finíssimas de vinil, normalmente utilizadas em sinalização bidimensional, que, lançando-se de parede em parede, sentiam tensão e gravidade em seus inesperados corpos, denunciados por rugas e barrigas. Agora, é um material de vedação que vaza: ergue-se um biombo pautando nossa trajetória pela sala, mas este é trespassado por recortes – o hexágono inscrito como ausência – que embaralham lances de olhar e desvelam novas perspectivas, acentuando a discrepância entre acesso visual e obstrução corporal. É como se cada passo fosse apenas o exercício de redimensionar nossa visada do entorno, até talvez tropeçarmos num bruto lembrete daquele primeiro momento, que na verdade nunca ficou para trás.
Por fim, entra em cena também, na própria trama formal do trabalho, o jogo de luz e sombra. Vale lembrar que, no teatro, o termo ‘bastidor’ designa tanto a armação que delimita o espaço cênico quanto o ambiente das coxias, isto é, justamente tudo o que se encontra fora do campo de visão da plateia, mas na iminência de adentrá-lo. Nota-se imediatamente, no entanto, que presença e ausência aqui remetem ao cinema mais que ao teatro. São situações contíguas, encadeadas sequencialmente no decorrer da experiência. Aliás, a própria artista reconhece que sua apreensão do espaço obedece uma temporalidade eminentemente cinematográfica, que ela vê operando também na arquitetura. Mais uma vez, o caso de Le Corbusier é exemplar: para Beatriz Colomina, suas casas entregam-se como uma sucessão de quadros cuja montagem coincide com a promenade, revertendo assim a cena mais estática (e estritamente teatral) dos recintos loosianos. O que é importante notar, porém, é que se a artista segue o fio dessa lógica, ela o faz a contrapelo de seu habitual telos. Não se trata, portanto, de acionar dinamicamente a maestria de um vidente. Caminhamos escorados no fino limiar entre uma presença escultórica marcante e sua pulverização, embrenhando-nos num produtivo campo de incertezas, onde ver talvez seja menos habitar do que desabituar-se.
[Sergio Bruno Martins]
Rio de Janeiro, novembro de 2010