Os títulos das obras mais recentes de Ana Holck pressupõem um estado de ação, pois a representação do movimento é incontestável. Mesmo não sendo um objeto cinético ou um autômato, suas obras evidenciam um campo de força, uma energia que emana de seus circuitos internos. Há uma vibração em estado contínuo. O aço inox gera uma trama que expressa e dá espessura a esse movimento incessante. Uma estrutura em desenvolvimento que produz uma multiplicidade de movimentos livres, mas que ambiguamente se condicionam e são regulados uns pelos outros. Importa dizer, portanto, que a continuidade e a plasticidade das linhas têm de ser obtidas ou conquistadas pelo próprio trabalho, que venceu a força da inércia e que depois continuou a se impor em face de uma dimensão de possibilidades.
Diria também que o aço é uma linha, e nesse sentido seus objetos são transicionais: se, por um lado, a tridimensionalidade os aproxima da escultura e de referências como o construtivismo e o pós-minimalismo, por outro a linha (de aço) e o fato de estarem presos à parede reverberam uma presença pictórica. O que está impregnado nessa trama metálica é também a gestualidade, aquilo que demarca o exercício da pintura ou do desenho. Em um tratamento descontínuo da superfície, Holck tensiona o aço na busca, eu diria, não de simplesmente abordar ou “conquistar” o espaço, mas de experimentá-lo. Nesse sentido, as obras possuem uma natureza especulativa e projetual ao romper o espaço representacional alusivo e tradicional.
Esse conjunto de trabalhos, como uma bifurcação, aponta para o campo da escultura e mais especificamente uma ocorrência ou imagem que acompanha a artista desde o início da sua trajetória, que é a do canteiro de obras, vide a escolha por um material que é da ordem da construção e da engenharia; por outro, o trabalho também admite a sua presença enquanto um registro da “mão da artista”, nesse aço/linha que é a marcação de um desenho no espaço.
A porcelana é o eixo por onde trespassam as tramas; é por essa estrutura fixa e porosa, já que o aço irrompe por ela, que o emaranhado de linhas se transforma em um evento perturbador: o movimento inquietante e desafiador do aço denuncia um tempo acelerado em contraponto ao impulso estático da porcelana. Dois tempos agindo simultaneamente. A porcelana, sem embargo, é uma viga estável e resistente que demarca um território da sustentação e controle. Contudo, é por meio dela que gesto, linha e espaço se prolongam em um estado impulsivo e dinâmico. Como acentua a artista, “a porcelana é a matéria bruta, não industrializada, pré-fabricada”. A argila, primeiro passo para a produção da cerâmica, “é passada numa extrusora, equipamento pelo qual a massa sai em tubos de bitolas regulares, preestabelecidas”. O uso da extrusora “apaga as digitais deixadas pela manipulação do barro, ele se torna, portanto, impessoal, indo contra a natureza moldável da argila”.
A princípio, as obras parecem demarcar uma execução muito rígida, objetiva e fria de sua produção. Mas a decisão da artista de fazer uso de tubos de porcelana e a forma como a trama de aço (ou seria pincelada? Ou um risco sobre o papel?) se apresenta no espaço – aproximando-se e afastando-se sem direção definida, concentrando e dispersando-se como em um campo magnético que busca uma imantação – trazem definitivamente um caráter gestual, autoral e único. São estratégias capazes de romper aquela materialidade e referência tão brutas que a própria fisicalidade do aço traz. Ademais, as tramas de aço se espraiam velozmente, quebrando de forma objetiva toda e qualquer rigidez das formas planas e retas.
A escolha por círculos ou elipses torna recorrente um estado de tensão e distensão. As linhas, isto é, a estrutura das obras, avançam sobre o espectador. Transformam-se em uma experiência em que sentimos a energia concentrada nesse estado de expansão e dilatação das formas. E, mais do que isso, o que se supõe, suavemente mas sem deixar de evocar a sua presença, é a sombra. A projeção da luz sobre as obras torna aparente uma continuidade das linhas no plano da parede. Refaz o desenho e acaba com a rigidez das coisas, transformando sua obra em uma eterna construção. Linhas são esboçadas nesse espelhamento causado pela luz ao mesmo tempo que anunciam que não podem ser limitadas, cercadas ou contidas. Desejam o espaço e uma absoluta exterioridade. São desenhos virtuais, construções provisórias mas não precárias (de sentido e qualidade). Riscam a parede, estão em movimento na superfície na tentativa da permanência mas são conscientes da sua própria aversão à presença da matéria. Como elementos de luz, essas linhas projetadas constituem-se como uma arquitetura sem peso.
Curiosamente, essa instabilidade, que parte de uma ordem pensada pela artista, gera a semelhança com a dança. A circularidade desses gestos, aliás, também próximos ao expressionismo abstrato, promove a representação de um deslocamento no espaço. Nesse sentido, pode-se pensar na correlação dessa imagem com a da dança. As formas moventes e cambaleantes querem vazar o plano e atingir o espaço. Parecem, ao menos, serem desejosas desse ato.
Por último, as tramas atravessam o espaço sem ocupá-lo. Nas suas circularidades e torções, sem início e sem fim, sem frente nem verso, sem interior e exterior, esse conjunto de obras é um desdobramento escultórico das lições da fita de Möbius, uma imagem tão cara aos neoconcretos, especialmente a Franz Weissmann, Lygia Clark e Lygia Pape. É curioso porque, apesar de as obras estarem presas à parede, elas efetivamente contrariam essa ancoragem e insistem em estar sempre indo de um lugar para o outro. Donald Judd ao escrever sobre a obra de Mark di Suvero, outra referência importante, que eu observo, para o trabalho de Holck, afirma que ele “utiliza vigas de ferro como se fossem pinceladas, imitando o movimento”. Uma referência mais contemporânea para o trabalho da artista mas que também atua sobre forças minimalistas é a obra de Richard Deacon. Em After (1998), o escultor britânico constrói um tubo longo, horizontal, oco e feito de estreitos aros de madeira, criando uma forma contínua e circular. Os aros são espaçados regularmente produzindo o efeito de uma treliça pela qual o espectador pode ver através, reproduzindo a experiência do grid. Essa escultura possui características que marcaram a produção do artista, como pode ser visto nas séries Cut & Fold (2022) e New Alphabet (2018). Nesses casos, Deacon trabalha com materiais que se apresentam em tiras ou folhas, geralmente entrelaçadas, evitando formas sólidas ou fechadas. A escolha por tornar a obra uma experiência também especulativa sobre o vazio aproxima as poéticas de Deacon, artista que também faz uso da cerâmica em suas produções, e Holck.
Finalmente, eu diria, que as obras da mostra protagonizam exatamente essa constelação de virtualidades espaço-temporais, de formas onduladas e contorcidas, produzindo uma arquitetura capaz de sugar o espaço à sua volta para sua dinâmica interna.
[Felipe Scovino]