Na metade da década de 1970, o governo federal iniciou as obras do que seria a maior usina hidrelétrica inteiramente brasileira: a Usina de Tucuruí, instalada no rio Tocantins, no Pará. Concebida em meio à retórica de um país que afirmava sua auto-imagem como se ainda estivesse na iminência de integrar o seleto clube das nações desenvolvidas, sob a égide de um Estado individado, mas que investia em grandes projetos que sustentariam o crescimento econômico para a região norte e, assim, propiciaria a modernização definitiva do Brasil, a Usina de Tucuruí, depois de sucessivos adiamentos causados pela crise econômica em que o país mergulhou, só pode ser inaugurada nove anos depois, em 1984.
A série Canteiro de Obras, de Ana Holck, realizada com base nas fotos tiradas por volta da virada da década por seu pai, um engenheiro calculista que trabalhou intensamente no projeto da Usina, revela aspectos de nosso contraditório e retardatário processo de modernização. As fotografias não dissimulam a monumentalidade da construção, metáfora do próprio gigantismo do “país do futuro”, um país com proporções continentais. Mas, se por um lado há nas imagens vestígios de uma utopia moderna e de crença no progresso tecnológico e na racionalidade como caminhos infalíveis para a superação do atraso de uma nação que estaria ainda na infância, há também, no trabalho de Ana Holck (e talvez o aspecto envelhecido e a predominância de tons sépia na imagem reforcem isso), uma explícita justaposição de linhas e de estruturas não tão rígidas e que dão uma aparência menos sólida e um tanto instável à construção.
A despeito de todo otimismo que nos anos de 1970 já havia sido praticamente abandonado, a não ser pelo discurso ufanista do governo ditatorial brasileiro, é mais do que sabido que o projeto moderno não chegou a se realizar completamente no Brasil. E o trabalho de Ana Holck, concebido com certo recuo histórico, talvez nos forneça elementos que nos permitam compreender a dificuldade de sua efetivação. O próprio fato de a Usina estar em obras, e essas obras terem sido mais longas do que o planejado, reforça a compreensão do inacabamento do projeto moderno. Por mais que alguns ângulos e enquadramentos sejam vertiginosos e não completamente convencionais, o trabalho da artista aponta para ambigüidades entre projeto e realização, entre construção e desconstrução ou entre o permanente e o provisório, que são bastante reveladoras. As conexões que a artista estabelece entre a malha de ferro da construção e que posteriormente é coberta pelo concreto, e a grade sobreposta feita por ela, nos permitem repensar a relação entre o aparente e o escondido ou, a partir da sobreposição de novas camadas, entre imagem e realidade.
Além de uma resignificação de um arquivo pessoal e de uma nova atribuição de valores, Canteiro de Obras recoloca nossas contradições formadoras: a engenharia, o projeto e a dureza do ferro são justapostas à irregularidade, à fragilidade e à falta de apoio das linhas que a artista desenha diretamente sobre as ampliações e que depois são refotografadas. Nesse processo, desenho e fotografia se fundem e ocorre um entrelaçamento entre o primeiro plano com a grade e o espaço fotografado. A montagem em caixas de luz, backlights, muito usadas em anúncios e propagandas pela cidade, dialoga tanto com a imagem que o país fazia e divulgava de si mesmo, como com a realidade vivida nas ruas, que já não tinha nada da limpeza formal dos grandes projetos urbanísticos modernos.
[Cauê Alves]
Agosto 2006