Guilherme Bueno
O processo de recodificação do espaço entre sua concepção renascentista e a ordem moderna seria marcado pelo movimento da “virada copernicana” assinalada por Kant. De uma configuração em que o sujeito cognoscente devia projetar-se para além de seu lugar, chegava-se, através dessa manobra, ao espaço como local existente aquém, ou seja, inerente à corporeidade e tangível ao finito. A um espaço que se resolvia oticamente pela distância ( a linha do horizonte – situada em algum lugar visto mas inalcançável ) sobrepõe-se sua existência como coisa, matéria a ser traumaticamente enfrentada face a face.
Os projetos de Ana Holck lidam com a difícil tarefa de construir um espaço equacionando sua opticidade e sua existência contingente e factual. Recorrendo em parte a sua formação como arquiteta para propormos uma reflexão, poderíamos dizer que eles guardam – ainda que sem qualquer espécie de nostalgia ou dívida – os movimentos de avanços e recuos entre uma visão “formal” e uma “funcional”, sem conceder, todavia, a nenhuma das duas. Claro, não se trata de citá-las, mas de valer-se da tensão entre estas duas possibilidades de forma e quais suas intenções quando, deixando de existirem apenas como idéias, materializam-se e ingressam no não necessariamente simpático mundo dos objetos, do uso, do desgaste. Algumas de suas instalações ativam estas heterogêneas situações, colocando-as objetivamente no presente. Em Impedimento, por exemplo, caminhando ao longo das salas do Parque Lage, o corpo é detido em um determinado momento: sua passagem háptica é vedada, só lhe resta especular, percorrer, atravessar a fita que separa espaço e sujeito através do olhar. Este último, por sua vez, precisa calcular uma série de dispositivos e operações historicamente sistematizadas para conseguir efetivar um coeficiente de “real”, ou seja, conseguir transpor – tornar “interna”, por assim dizer – uma operação que “externamente” se mostraria em primeira mão inviável.
No caso de Transitante, ocupação especificamente desenvolvida para a Galeria Cândido Portinari, UERJ, ocorre uma significativa diferença em relação ao trabalho anterior. Enquanto naquele o centro do espaço permanecia interditado – mas não deixava de existir de algum modo, de ser “possível” – em Transitante, como o próprio nome esclarece, este é decididamente cancelado. Constrói-se um espaço sem ponto fixo, não existe o momento estático / extático da totalidade, aquela condensação imaginada pelo pensamento clássico do momento iminente e decisivo. Local de constante mobilidade – moto perpétuo – desenvolve-se no estabelecimento de situações. Isto é, em se tratando de uma estrutura temporal ( mas não a de uma narrativa linear ), espaço e tempo não existem mais como categorias, dados cognitivos isolados, irreconciliáveis; do contrário, organizam uma unidade indivisível, tornam-se mesmo indistintos. Indo mais além, este espaço-tempo ativa uma noção de site-specific bastante singular: trata-se de potencializar, fazer objetivos, materiais, dados até então ali existentes apenas de forma “mental”, “abstrata”. Uma intervenção, todavia, que não “ilustra”, mas problematiza. Aqui, o trabalho guarda, instigante, uma lógica e estrutura operativa análoga – e por esta mesma razão profundamente enriquecedora – a do desenho.
Ao se executar com fitas adesivas uma manobra entre a bi e a tridimensionalidade, por meio do deslocamento / descolamento de linhas que se amoldam e desprendem do solo, das paredes, do teto, dos mais diversos pontos, haveria, mesmo que metaforicamente, uma transposição similar àquela ocorrida entre o desenho como ideação, planejamento e sua consecução no objeto (é bom lembrar, porém, seu caráter autônomo na modernidade, legitimando-se como coisa em si), procedimento corriqueiro, por exemplo, na prática arquitetônica. Neste caso, entretanto, qualquer etapa, transição protocolar ou categórica é prescindida em favor da simultaneidade entre pensamento e execução. Um “desenho no espaço”, executado por um corpo que pensa, no qual é necessário enfrentar o volume em vez da superfície; a rugosidade do papel como suporte é substituída pela aparentemente indelével resistência do ar, evidenciada pela tensão da fita em luta contra a gravidade.
O espaço entrecortado em feixes diagonais parece compelir, absorver, tragar o olhar. E, neste momento em que quase o arrasta para o interior da galeria, como uma espécie de campo magnético, parece necessário ao individuo, a cada passo que dá, recorrer à exigência de manter seu equilíbrio, frente a um entorno instável e não raro hostil ao encontro de uma posição confortável. Cada pequeno metro recorrido é, de algum modo, a descoberta de uma nova posição no mundo, diante deste facetamento que parece inverter o cubo ao qual se estava acostumado. Mas, sendo também um lugar onde não se está sozinho (ou seja, é interdito ao vate, ao gênio, ao demiurgo), ele, em sua “sociabilidade” guarda consigo a possibilidade de entender sua construção como uma consciência do mundo, a determinação de um lugar em que o “eu” e as “coisas” são o resultado de uma positividade recíproca, passando daquela aridez inicial a uma possibilidade viável de relação esclarecida. Um empreendimento significativo, uma vez que o executa com a imediaticidade requerida, mas sem conceder a uma urgência ansiosa.
Coloca-se, literalmente, um problema de consciência, bastante claro e, pode-se dizer, imprescindível: assumir a iniciativa de nos indagarmos sobre nosso “estar no mundo” e, simultaneamente, a relação com aquilo pelo qual o sistematizamos. Não se trata de proclamar um antídoto, mas de recusar a passividade e anestesia com que ele nos é “oferecido”. Hoje, como sempre, nada garante que alguém se encarregará desta tarefa por nós, ou, no pior dos casos, o mesmo tomará tal dever sem que este lhe tenha sido outorgado. A diferença, entretanto, não é permanecer resistente à mitologia do homem- máquina, mas a de, além de transpô-la, sabendo-a esgotada, recusar também a perda de sua primeira metade (homem), sem subsistir nisso implícita qualquer recorrência ou, apologia a uma idade de ouro em suspensão, na qual nossa materialidade possa ser ocultada. Não é mais uma impossibilidade metafísica que estaria em jogo como contraparte, mas a disponibilidade de um grau de estranhamento, de mal-estar até se for o caso, de se reclamar o corpo como local ativo, senão garantido de uma autonomia plena (o que seria um novo mito), ao menos da obtenção de autonomia uma razoavelmente flexível.